Avaliação do impacto do Decreto no 10.935 – Proteção das cavidades naturais subterrâneas

Compartilhe:

Quase dois anos após a fatídica reunião interministerial ocorrida em 22/04/2020, em que o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles defendeu aproveitar a pandemia de Covid-19 para “passar a boiada” e fragilizar a legislação ambiental, a porteira finalmente foi aberta para o estouro passar por cima das cavernas brasileiras.

Cedendo à pressão principalmente de mineradoras, algumas envolvidas nos desastres ambientais de Mariana e Brumadinho, o governo federal publicou o decreto Nº 10.935, de 12 de janeiro de 2022. O referido decreto substitui a legislação atual (decreto Nº 99.556/90, alterado pelo decreto Nº 6.640/2008) e altera profundamente o arcabouço legal que trata da proteção das cavernas, trazendo vários retrocessos e, inclusive, inconstitucionalidades.

O referido decreto foi publicado apesar de diversas manifestações contrárias do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (CECAV), unidade especializada do Instituto Chico Mendes de conservação da Biodiversidade (ICMBio), e também de pareceres da Procuradoria Federal Especializada.

Nesse sentido, a Ascema Nacional encaminha a Nota Técnica nº 1/2022/CECAV/DIBIO/ICMBio, de 17.01.2022, produzida pelo CECAV/ICMBio, cujo teor chama a atenção para diversos pontos críticos do decreto 10.935/2022 e das tratativas para implementar tais retrocessos. Destacamos os seguintes pontos:

1. A discussão sobre mudanças na legislação iniciou ainda em 2020, a partir de minuta produzida pelo Ministério de Minas e Energia (MME). Após manifestações contrárias das áreas técnicas do MMA, sociedade civil organizada, Ministério Público, entre outros, a proposta teve a discussão finalizada;

2. No final de 2021 a discussão voltou à tona, e diversas reuniões ocorreram no MMA. Não houve consenso em diversos pontos, e o decreto foi publicado com diversos problemas insistentemente apontados pelas áreas técnica e jurídica vinculadas ao ICMBio;

3. Com isso, o decreto 10.935/22 traz principalmente retrocessos e diminuição da proteção ambiental ao patrimônio espeleológico.

4. Até mesmo as cavernas de relevância máxima, que são uma grande minoria, agora podem ser impactadas (até mesmo completamente destruídas). Na prática, além das cavernas de alta, média e baixa relevância, o novo decreto permite a destruição também de cavernas de máxima relevância (ou seja, qualquer caverna), com exceção daquelas que são o último habitat conhecido de uma espécie. Isso, segundo o governo, evitaria a extinção de espécies. No entanto, na prática podem ser autorizados impactos até o extremo de reduzir o habitat de uma espécie ameaçada ou de troglóbios (espécies exclusivamente subterrâneas) raro a apenas uma caverna, o que resultaria em aumento do seu risco de extinção ou até mesmo levá-las à extinção em função de uma diminuição da área necessária à manutenção de uma população viável.

5. Isso pode aumentar o número de espécies da fauna brasileira ameaçadas de extinção, bem como aumentar o risco de extinção das espécies que já são consideradas oficialmente ameaçadas. Além do aumento do risco de perda de biodiversidade, também há risco de perda de componentes únicos da geodiversidade e de sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico conforme art. 216 da Constituição Federal.

6. No limite, uma mineração, por exemplo, poderia destruir todas as cavernas em sua área, independentemente de sua relevância, considerando as décadas de operação de uma mesma mina e as várias licenças ambientais emitidas. Restariam apenas as cavernas que fossem o último abrigo para espécies ameaçadas ou de troglóbios raros, se identificadas. Ou seja, pode-se esperar uma destruição paulatina de todas as cavernas, incluindo as de relevância máxima, justamente por uma legislação que deveria proteger o que há de mais importante no patrimônio espeleológico;

7. As medidas compensatórias devido a impactos em cavernas de relevância máxima são inferiores às previstas para cavernas de relevância alta, de forma completamente desproporcional aos impactos gerados.

8. O decreto dá poder aos Ministérios de Minas e Energia e da Infraestrutura para editar, junto com o Ministério do Meio Ambiente, as normas que vão regulamentar a aplicação do decreto. O protagonismo de setores governamentais sem atribuições e competências relacionadas à temática ambiental e, mais especificamente ao patrimônio espeleológico, podem levar a normativas que sejam consideradas novos retrocessos ambientais, trazendo mais insegurança técnica e jurídica ao licenciamento ambiental.

9. Com isso, o novo decreto pode atingir o núcleo essencial do direito fundamental ao ambiente e violar o princípio do não retrocesso ambiental. Adicionalmente, pode trazer dificuldades ao licenciamento ambiental devido a inseguranças técnicas e jurídicas, com efeito justamente oposto ao almejado. De fato, o decreto está sendo contestado no Congresso (via propostas de Decreto Legislativo), pelo Ministério Público Federal e via ações impetradas no STF.

Compartilhe:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *